Entrevista realizada com José Valdir Misnerovicz por Carla Benitez Martins¹

Revista InSURgência | Brasília | ano 3 | v.3 | n.2 | 2017 | ISSN 2447-6684.

Esta edição da Revista InSURgência reflete a urgência de se pensar o agigantamento do Estado Penal e a sofisticação de seus braços de controle, especialmente na realidade do capitalismo dependente.

É sabido que no Brasil é a juventude negra o principal alvo de seu projeto de extermínio (que tem origem colonial e que, essencialmente,perpetua-se até a atualidade), mas a arma penal também esteve historicamente apontada aos movimentos populares, que rompem grilhões e ecoam gritos de desespero, desamparo, resistência e esperança desde que o Brasil é Brasil.

Nos últimos anos, no país, vivenciamos o agravamento das perseguições, repressões e processos concretos de criminalização aos movimentos populares. Ao mesmo tempo, assistimos atônitos o ainda maior inchaço da criminalização primária, abrindo margens para mais sofisticadas maneiras de se criminalizar as e os lutadores sociais, especialmente com o advento da Lei das organizações criminosas, a “regulamentação desregulamentada” da delação premiada e a lei que  tipifica o terrorismo, leis com formas abertas da descrição das condutas ou então com diminuição de garantias processuais e ampliação da discricionariedade do juiz e outras autoridades. Verdadeiras armadilhas para sufocar as lutas e que tornam o Estado brasileiro, originalmente autoritário, ainda mais musculoso.

Por todo este cenário, o nosso entrevistado não poderia ser outra pessoa que não José Valdir Misnerovicz, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Via Campesina, pertencente ao primeiro grupo de presos políticos após o golpe jurídico-parlamentar-midiático brasileiro, em 2016.

Nesta ocasião, houve mandado de prisão a quatro integrantes do MST do Estado de Goiás – duas delas sendo efetivadas – através de denúncia do Ministério Público pelo crime de organização criminosa, a primeira vez que este tipo penal foi utilizado para reprimir trabalhadores do campo. Ademais, dentre as teses acusatórias, utilizou-se, de maneira manipulada, a teoria do domínio do fato, popularmente conhecida com o “Mensalão” e já empregada em outra oportunidade, no início dos anos 2000, contra o Movimento. O caso gerou indignação entre aquelas e aqueles que lutam e, mais do que isso, foi compreendi-
do como um laboratório a testar as maldades possíveis neste período histórico que se inaugurava.

José Valdir Misnerovicz tem sua trajetória militante iniciada na década de 90, no Rio Grande do Sul. Antes de ser militante do MST, foi militante da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos movimentos de base da Igreja católica. No MST, desde 1991, atuou fundamentalmente no Mato Grosso e em Goiás, onde tem cumprido tarefas estadual e nacional do Movimento. Ademais, desde o surgimento da Via Campesina, sempre contribuiu na construção dessa frente de atuação dos movimentos camponeses. Valdir, como é mais conhecido, também é graduado em Geografia na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e mestre na mesma área pela Universidade Federal de Goiás (UFG), sendo expressão da importância de produzirmos conhecimento socialmente referenciado, engajado enquanto ferramenta para a transformação radical da realidade.

O entrevistado afirma, em momento posterior às respostas oficiais da entrevista, que houve repercussão e, inclusive, o reconhecimento e o tratamento do próprio sistema prisional, de que ali se tratava de um preso político. Fato este não contestado por ele, pois, conforme suas próprias palavras:

De fato somos presos políticos, porque não havia razão alguma do ponto de vista jurídico de decretar a prisão e ela se deu justamente com o objetivo de tirar de circulação, por conta de um contexto de acirramento de lutas que estava havendo naquele período, e como uma forma também de dar um recado aos movimentos populares de esquerda que estavam em movimento e questionando toda a situação de golpe que estava em curso. A
escolha da prisão não foi aleatória, foi uma decisão política.
Para ser organização criminosa teria que se visar obter vantagem ilícita, o que, no caso em tela, seria equiparada à luta coletiva do MST pela efetivação das promessas constitucionais relativas à reforma agrária. Ou seja, trata-se do velho argumento criminalizador, com uma roupagem nova, ainda mais perigosa e daninha. Tomemos contato com as reflexões de nosso entrevistado sobre o vivido, como reflexo de uma realidade estrutural de crise do capital.

Carla Benitez Martins: Como você definiria o que é a criminalização dos movimentos sociais?

José Valdir Misnerovicz: Esta questão é central, em especial neste momento conjuntural que estamos vivendo, não só no Brasil, mas na América Latina e até mesmo em escala mundial. Estamos vivenciando uma ofensiva das forças do capital e dos Estados sobre todas as forças e iniciativas anti-hegemônicos. A estratégia deles é não deixar vingar nada de alternativo ao neoliberalismo e ao neocolonialismo em curso. As ações são coordenadas internacionalmente, as formas utilizadas nesta ofensiva são as mais diversas, mas o objetivo é o mesmo. Impedir o novo, o alternativo. Esta é uma necessidade das forças do capital, porque existe uma crise estrutural do capitalismo, suas contradições estão latentes e não tem solução via o sistema. Portanto, sua ação é preventiva: não permitir que surjam alternativas ao modelo hegemônico, por mais simples e pequenas, mas já se tornam uma ameaça, pois as iniciativas a partir de outros princípios e lógica podem ganhar força para além do discurso, ganhar materialidade. É por isso que a tendência é de cada vez mais aumentar este acirramento da luta de classes, de disputa de projetos.

A criminalização está relacionada à tentativa de tornar crime as lutas, os lutadores e as organizações sociais populares, e esta é uma forma clássica utilizada pelas forças do capital por meio do Estado e seus aparatos. Porém, é importante que de início de conversa sejamos precisos em relação a questões abordadas. Digo isso para refletir que há movimentos e movimentos, há movimentos sociais que são funcionais ao sistema hegemônico capitalista, eles estão em todos os lugares fazendo a disputa na sociedade na perspectiva de manutenção e fortalecimento desta estrutura. Em muitos casos, até se apresentam com bandeiras nobres, exemplo questão ambiental e ecológica, corrupção, na questão da terra, defesa de animais ou algum tipo de assistencialismo. Geralmente são financiados pelo Estado, ou por corporações, fundações etc.

Assim como há movimentos sociais do campo de esquerda que são uma espécie de corrente de transição do partido, portanto, não tem autonomia política, e pouca criatividade, estão subordinados a determinadas estruturas centralizadas. Por outro lado, há os movimentos sociais de natureza popular, movimentos de novo tipo com autonomia política. Com formas organizativas horizontalizadas. Surgidos a partir da década de 1970. São movimentos populares que se propõe a superação sistêmica, combinando o combate ao sistema hegemônico e a construção do novo, da contra hegemonia, numa relação de unidade dialética em e no movimento. Há uma quantidade grande de movimentos desta natureza em todo mundo, em especial na América Latina, alguns com atuação em escala local, outros regionais e em escala nacional, portanto, uma grande diversidade. Uns com uma atuação mais específica, uma determinada base com suas demandas, porém articulam a luta específica com a luta geral em defesa de um projeto de sociedade com outras bases. Com o desgaste das formas tradicionais de organização via partidos e ou sindicatos, com suas estruturas centralizadas e pouco criativas, abre-se caminho, espaço para os movimentos sociais populares. Esta é uma novidade do ultimo período histórico, digamos as últimas três ou quatro décadas. Este novo tipo de Movimento social popular procura combinar a luta econômica e política, formação técnica e política. Por combinar autonomia e descentralização, permitindo a participação de todos como sujeitos construtores de todo processo, ou seja, ajudar na solução concreta das necessidades específicas e as questões gerais da classe como um todo. Este tipo de movimento vem crescendo em todo planeta. O exemplo que ajuda ilustrar este crescimento e importância dos Movimentos Sociais Populares está no fato que, assim que o atual Papa Francisco assumiu, chamou justamente estes Movimentos para construir um espaço de reflexão, com o objetivo de criar uma articulação em escala mundial, um espaço premente de encontros, debates e ações na perspectiva de fortalecer as ações locais, porém articuladas internacionalmente. Em torno dos três eixos Terra, Trabalho e Teto. Isso é histórico. Mesmo não seja algo assumido pela instituição como um todo, que tem seus limites no sentido de projeto estratégico, mas só o fato de construir este espaço, proporcionar encontros e debates sobre os dilemas da humanidade e apontar as necessidades de mudanças, de fazer crítica contundente ao atual modelo hegemônico, cumpre um papel fundamental. Costumamos falar nas nossas análises em forma de brincadeira “até o papa falou” (risos), ou seja, não é pecado falar e combater o capitalismo, pelo contrário, é justamente isso que assusta as forças hegemônicas e é por isso que os mesmos se tornaram principais alvos da tentativa permanente de criminalizar, para destruir.

CBM: Em termos gerais, qual seria o papel da mídia, das políticas e do judiciário neste processo de criminalização?

JVM: Com certeza são papeis e funções complementares para manutenção da atual ordem hegemônica. Refletindo sobre cada um deles; em relação à mídia ou aos meios de comunicação hegemônicos, é fundamental compreendermos o papel histórico na sociedade dividi da em classes, como é o caso brasileiro. Assim como é fundamental caracterizá-los sem esta compreensão não conseguimos fazer uma reflexão coerente e precisa dos mesmos. Sendo assim, é importante termos claro que os meios de comunicação estão sob o controle do poder hegemônico, estão concentrados e controlados por um pequeno grupo da elite econômica. Portanto, é um instrumento a serviço dos interesses desta mesma elite. As forças anti-hegemônicas não podem contar e nem criar ilusões com os mesmos, pelo contrário, precisam combater sistematicamente.

Não há espaço para os Movimentos Sociais Populares apresentarem suas concepções de mundo e sociedade, nem tão pouco para informar sobre sua agenda propositiva. Pelo contrario, tudo que é veiculado pela imprensa burguesa sobre os movimentos sociais populares é na tentativa de desqualificar, de confundir a sociedade, de deslegitimar. Uma tentativa permanente de naturalizar a desigualdade social, de criar uma cultura do medo, da desesperança, do ódio ou do tudo igual. De criar no imaginário da sociedade uma ideia dos Movimentos Sociais Populares de ameaça, do perigo, do violento, da “contra ordem”. Porque isso é funcional para o sistema.

Não há diferença entre os vários meios e veículos de comunicação hegemônicos em relação sua estratégia de combate aos Movimentos Sociais Populares, o combate é sistemático e permanente. Pois são os mesmos grupos que controlam praticamente todos, são eles que veiculam as mesmas notícias de seus interesses. Um exemplo é que aquilo que passa nos telejornais nas noites, no dia seguinte está nos jornais impressos e nas rádios, são as mesmas notícias, mesma interpretação dos fatos e, praticamente, os mesmos porta-vozes. Os jornalistas são os mesmos que dão a noticia, comentam, julgam a partir de sua concepção e lógica, ou seja, da lógica da elite econômica. Se algum jornalistas sair/fugir da orientação é imediatamente desligado, excluído. O jornalista não passa de um porta-voz do patrão, do dono do meio de comunicação. Que por sua vez atua a partir de sua posição e condição de classe.

A imprensa cumpre um papel determinante para construção da imagem dos Movimentos Sociais Populares anti-hegemônicos. Podemos destacar algumas que estão mais presentes, como, por exemplo, do “atrasado”, “dinossauro”, ou seja, os Movimentos Sociais Populares ao fazer a luta por mudanças estruturais são considerados atrasados, superados, contra o “desenvolvimento” ou o “progresso”. Esta tentativa desta imagem dos Movimentos Sociais fica bem explícita quando os Movimentos do campo, por exemplo, fazem ações contra os transgênicos, agrotóxicos, da construção de grandes hidrelétricas, de ocupação de latifúndios e monoculturas, de obras de infraestruturas do capital.
Os meios de comunicação hegemônicos a serviço do capital criam uma falsa ideia e uma concepção de “moderno”, de “desenvolvimento”, “progresso” e não dão espaço para o debate do contraditório. Isso cria na sociedade uma única “verdade”, versão que passa a ser defendida pelas pessoas no senso comum, mesmo que estas sejam as principais vítimas deste modelo de produção e ciência, e instalação de certas obras e ou investimentos que só visam mais lucros em menos tempo.
Outro exemplo está na luta pela terra que os movimentos sociais organizam, em especial o MST, por ser considerado mais articulado nacional e internacionalmente e ousado nas suas ações, os meios de comunicação criam uma imagem, um estereótipo de “vândalos”, “vagabundos”, “perigosos” e esta imagem vai contaminando o imaginário da sociedade, principalmente aquelas camadas mais despossuídas de conhecimento, que se orientam pelo que sai na imprensa. Não sai nada na imprensa hegemônica de positivo, a exemplo da produção de alimentos saudáveis, as escolas, da vida social das comunidades de assentamentos. É comum ouvirmos de pessoas, quando tem a oportunidade de conhecer um assentamento, acampamento ou ir em uma feira ou ainda participar de um evento de debates dizer que não sabiam que era assim, que o MST é organizado, que tem propostas para resolver parte dos problemas da sociedade, que o agronegócio é tão prejudicial para sociedade, que é possível alimentar a humanidade com alimentos saudáveis. Infelizmente, a grande maioria da população pensa e age com a cabeça do que sai na imprensa que, por sua vez, é ideológica e economicamente comprometida com o modelo hegemônico. Isso é funcional ao sistema, na verdade é o que sustenta o modo de produção capitalista. É importante destacar que os meios de comunicação cumprem um papel fundamental na formação cultural da sociedade, por isso devemos continuar a luta pelo combate ao monopólio dos mesmos e exigir o controle público e popular. Ao mesmo tempo, continuar construindo meios de comunicação alternativos anti–hegemônicos pra fazer a disputa na sociedade. Já existem muitas e importantes iniciativas que precisam ser potencializadas.

Polícia: tem cumprido um papel importante para manutenção da “ordem”, cada vez mais agressiva, mais qualificada no monitoramento e combate aos movimentos sociais populares. Recebem uma formação ideológica anti-social, fazem uma disputa forte na sociedade, com cada vez mais autonomia em relação ao executivo, chegando ao cúmulo de inversão dos papeis, atuam na disputa política eleitoral, em cada Assembleia legislativa tem um ou mais integrantes, assim como no congresso nacional, ou seja, tem uma capacidade de articulação institucional em defesa de suas concepções. Um discurso raivoso homofóbico. Defende a volta explícita da ditadura militar, do armamento, redução da idade penal, mudanças das leis ainda mais punitivas, combatem os direitos humanos, perseguem os militantes sociais de todos os seguimentos. Além do papel histórico de repressão seletiva e massiva. Os Movimentos Sociais Populares são desafiados a seguir lutando pelos seus objetivos sabendo que a força repressiva do Estado burguês atua sistematicamente no combate. O desafio é proteger seus militantes e todos que compõem sua base social. Tomar cuidado com os infiltrados, as provocações. Seguir criando conflitos organizados com condição de criar uma correlação de forças que permita tratar as questões sociais como caso de política e não de polícia. Saber combinar quantidade e qualidade organizativa nas lutas. Seguir denunciando todas as formas de repressão sofridas pelas forças repressivas. A força dos Movimentos Sociais Populares está no número de pessoas e na organização, não no discurso.

Judiciário: O judiciário reflete a natureza do Estado, portanto, no caso brasileiro ele tem um papel fundamental para manutenção da “ordem”. O poder judiciário tem sido a principal trincheira das forças do capital para fazer valer seus interesses de classe. Não há o que esperar deste poder a favor do projeto anti- hegemônico, seria uma ingenuidade dos Movimentos Sociais populares apostar na possibilidade de obter avanços, e ou conquistas deste poder. Na luta de classes é possível e até compreensivo cometer-se erros táticos, faz parte da luta, mas o que não se admite é ingenuidade. Um dos desafios dos Movimentos Sociais populares é acumular em como lidar com este poder, pois com o poder executivo e legislativo existe um acúmulo nas formas de fazer a pressão, já ao poder judiciário há pouco acúmulo e isso os deixa numa posição confortável. Não existe uma receita, mas o que está claro é que há uma necessidade de construir iniciativas de pressão que vão desde as denúncias de comportamento e privilégios, pressão popular exigindo a democratização do judiciário e controle popular. Em casos de decisões abusivas a direitos coletivos, os Movimentos Sociais Populares devem estimular a desobediência civil. A lei não pode estar acima da Justiça. A desobediência quando a lei fere a justiça é um direto e uma necessidade.

CBM: Você diria que houve mudanças significativas na conjuntura neste último período no Brasil? Houve maior recrudescimento da repressão? Quais são os marcos deste processo?

JVM: É uma questão complexa (para questões complexas, não há respostas simples). Há muitas leituras sobre o momento conjuntural, mesmo no campo popular, um diria que existe um esforço para compor um quadro mais completo sobre este momento, os vários coletivos com ajuda de intelectuais têm dedicado tempo e esforços nesta perspectiva de análise. Há muitas convergências já construídas, entre elas podemos destacar que: há uma crise estrutural, sistêmica, de projeto, momento de ofensiva histórica do capital, retirada de direitos, neocolonização, neoliberalismo, não há espaço para o diálogo, acirramento na sociedade, intolerância, banalização da vida, repressão seletiva e massiva. Um processo crescente de concentração de renda e riquezas como nuca antes na história da humanidade, ao mesmo tempo, contraditoriamente, um processo de empobrecimento e miséria de milhões de pessoas. Para termos uma ideia da concentração de riquezas no planeta, segundo Pedro Antônio Ribeiro de Oliveira, circulado pela articulação Fé Política 30 de outubro de 2017, 147 grupos controlam 40% do sistema corporativo mundial, sendo 75% deles bancos, 1% dos habitantes da terra detêm riqueza igual àquela dos 99% restante, e 8 homens têm riqueza igual a metade da população mundial.Poderiam seguir incluindo inúmeros outros dados sobre este processo de concentração de riquezas, mas não é o caso, importante que percebamos que isso gera um desequilíbrio na sociedade que vai se tornando insustentável, uma hora isso vai implodir. Existe uma crise ecológica grave, eu até diria que esta talvez seja a mais grave das crises contemporâneas, a lógica do metabolismo do capitalismo contemporâneo que acelerou processo de extração de bens naturais para transformar em mercadorias descartáveis em curto prazo, transformando em lixo, criou desequilíbrio e uma contradição entre o tempo do capital (rápido) e o tempo da natureza (que segue sua dinâmica). Isso é insustentável e irreversível, portanto, gravíssimo. Existe uma crise social gravíssima que se reflete no desemprego, na violência, no não acesso à saúde e educação, moradia etc… Esta crise social está tão explícita que basta observar nas cidades a quantidade de pessoas em situação de rua, pedindo comida, dinheiro..Podemos acrescentar a crise política que passa o Brasil, a ponto que os governantes e políticos convencionais não conseguem se misturar com o povo. Isso é grave porque criou certo consenso na sociedade que a política não presta, que é sinônimo de roubalheira.. Isso abre espaço para ideias reacionárias, fascistas, defesa de ditadura militar. Quando sabemos que é pela disputa política que encontraremos caminho para resolver os graves problemas da sociedade. Eis um grande desafio para os Movimentos Sociais populares de reafirmar a política como caminho e não negá-la. Ainda temos a crise de projeto alternativo, as forças populares sabem bem o que não querem, porém ainda não está bem claro o que querem e como fazer para alcançar os objetivos estratégicos. Apesar de ter tido avanços em muitas iniciativas organizativas e políticas, há muito que ser feito. O caminho é longo. Ou seja, em síntese, a crise é grave, sistêmica, portanto, prolongada e não se resolve somente pelo caminho eleitoral, é necessário rupturas e mudanças estruturais anti-sistêmicas.

CBM: Para além da intensidade, você considera que houve uma sofisticação nos processos de criminalização no último período (novos mecanismos legais, operacionais, administrativos, argumentativos)?

JVM: Tudo muda! Isso faz parte da dinâmica da sociedade e da luta de classes, tanto nas formas de organização como também das lutas. As forças hegemônicas, o aparto do Estado de classe também vão aperfeiçoando suas formas e mecanismos de combate e controle. Existe uma combinação das formas clássicas, entre elas:cooptação individual e coletiva, da infiltração, repressão, prisões, criminalização, eliminação física. São formas usuais desde a divisão da sociedade em classes sociais. O que há de novo são técnicas de acompanhamento em tempo real dos Movimentos Sociais populares e suas lideranças. Atualmente tudo é registrado, filmado, gravado, nada e ninguém escapa. É necessário lidar com esta realidade de monitoramento permanente. No aspecto do judiciário, a novidade é esta nova fase de enquadramento na lei de organização criminosa, a tal da teoria dos fatos, e da convicção. Virou moda, tudo é organização criminosa, ou seja, há uma clara intencionalidade das forças hegemônicas de transformar a luta social em crime. Toda esta estratégia está sendo respaldada pelos meios de comunicação de massa hegemônicos que cumprem um papel de linchamento político os escolhidos por eles.

CBM: Fale um pouco mais sobre o movimento que você compõe, suas lutas e os desafios que vem enfrentando nessa conjuntura?

JVM: Minha militância já aproximadamente três décadas é no MST (Movimento Rural Sem-Terra) Movimento que caminha para celebrar 34 anos de existência, talvez seja o Movimento Social Popular mais amado e odiado. Os objetivos são claros; democratizar a terra dando uma função social e ecológica a este bem natural, realizar reforma agrária integral, massiva, popular, e a transformação social, ou seja, contribuir para a construção do socialismo. Nesta perspectiva de alcançar tais objetivos, o MST procura combinar seu caráter sindical, popular e político, combinar a luta econômica e política. Organizar a luta para conquista de latifúndios em assentamentos, os assentamentos em territórios camponeses relativamente autônomos, produção de comida saudável, eliminar o analfabetismo, cuidar da terra, água e biodiversidade e dos seres humanos. Organizar o conflito e o diálogo. Combater todas as formas de opressão, construir e vivenciar os valores humanistas. Os desafios são inúmeros, podemos destacar alguns: transformar a luta pela terra, reforma agrária e transformação social numa luta de toda a classe trabalhadora. Massificar e dar qualidade às lutas pela terra, Incorporar/disputar na sociedade a ideia de que a terra é um bem natural social, portanto, precisa ser cuidada, que o latifúndio é social e economicamente improdutivo e destruidor, que o modelo do agronegócio é o modelo da morte, que é possível produzir alimentos saudáveis para alimentar toda humanidade com técnicas de manejo que convivam harmoniosamente com a natureza. Enfim, tudo que conquistamos foi fruto/resultado das lutas,nada foi dádiva de governos, pelo contrário, precisou de muita pressão. Já fomos condenados e absolvidos muitas vezes, choramos a morte física de muitos camaradas, mas já fomos parteiros de milhares de vidas. Acumulamos bastantes experiências, já são gerações formadas na luta concreta e nas escolas e universidades, porém há muito o que fazer. Por isso que a luta segue até o dia que não mais haja latifúndio, nem sem terra e injustiça.

CBM: Se compreendermos que o processo de criminalização de movimentos sociais está relacionado à ousadia de suas lutas e potencialidade de perturbação de uma ordem desigual e opressora, qual pensa ser o lugar do direito neste enfrentamento social? Para você, o direito pode ser taticamente usado para o fortalecimento da luta?

JVM: Costumo sempre dizer que tudo é importante na luta de classes, que não devemos separar um ou outro, mas sim somar um com outro. Penso que existe e conheço inúmeros militantes sociais que atuam nesta trincheira do direito formal, que cumprem um papel fundamental na defesa nos tribunais, quantos militantes que por seu trabalho foram postos em liberdade. Quantas teses e teorias foram elaboradas que servem de referências, quantas jurisprudência, os militantes sociais do direito sofrem as mesmas perseguições por sua defesa contundente, se expõem ao fazer esta defesa. Eu diria que neste atual estágio da luta de classes e criminalização que estamos vivenciando no Brasil, estes militantes profissionais que atuam com direito são imprescindíveis. Porem, o importante é ter claro quais são os limites de atuação nesta frente de lutas (para não criar frustrações) por conta da natureza do estado de classe e o papel histórico do poder judiciário. O desafio é qualificar cada vez mais os militantes do direito popular, massificar a formação com esta visão crítica. Fortalecer as articulações entre as organizações e pessoas que atuam em defesa dos direitos dos empobrecidos e vítimas da violência do Estado e capital. Saber combinar a luta nos tribunais e nas ruas com inteligência e ousadia.

¹Graduada em Direito pela Unesp/Franca; Mestra em Direito pela UFSC. Doutoranda em
Sociologia pela UFG. Professora efetiva na UFG/Regional Jataí, nas áreas de Criminologia
e Direito Processual Penal.

Para ver a versão em PDF esse o link: Entrevista

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